quinta-feira, 6 de março de 2014

Tá tudo errado!


Alma humana, um dos maiores empreendimentos da engenharia divina, ao observar a realidade que aqui se encontra estabelecida, percebe que existe algo de errado com as coisas que a rodeia e em sua própria constituição. Isto é possível, acredito, porque no mais profundo da alma humana existe uma espécie de conhecimento inato, algo como uma radiação cósmica de fundo com origem no próprio Deus, que traz à superfície da existência humana a certeza de que a ordem estabelecida no planeta diverge em grande medida do projeto original.
O sábio Salomão chamou essa capacidade humana de transcender a sua realidade de eternidade[1]. Ela foi depositada pelo próprio Deus no coração humano e o inquieta diante da realidade. Essa inquietação, fruto da percepção de que as coisas no mundo andam fora de lugar, está espalhada em inúmeras manifestações humanas. Na literatura, nos noticiários, nas peças teatrais, na pintura e até mesmo na guerra temos alguns dos receptáculos daquilo que tem incomodado o ser humano em sua jornada pelo caos mundano.
Nesse quadro de inquietações pintado pelo homem diante de sua própria existência, a música parece encontrar um lugar especial. É, talvez, o veículo de maior expressão e análise para diagnosticarmos aquilo que incomoda a alma social do mundo, pois, como bem observou Jesus, “a boca fala do que está cheio o coração”[2]. O próprio Deus, o Pai, também parece reconhecer essa realidade, visto que Ele, por meio do Espírito Santo, preservou nas Escrituras Sagradas do Antigo Testamento uma expressiva quantidade de músicas do povo judeu[3]; canções que, a semelhança daquelas que ouvimos em nossos dias, nos permite observar o coração humano.  
Como temos demonstrado, o coração humano de nossos dias é profundamente inquieto ante o caos interno e externo que se manifesta diante de seus olhos. É bem verdade que o ritmo acelerado com que tem pulsado alguns corações na pós-modernidade parece “demonstrar” certo ar de tranquilidade. Isso, todavia, muda drasticamente à medida que o ritmo da vida diminui e todos percebem que o viver não se limita a correria; o que o sábio descreveu como correr atrás do vento.      
E é quando esse ritmo diminui e o homem percebe que passou boa parte de sua vida correndo atrás do vento que ele abre a sua boca e declara: “Nos deram espelhos e vimos um mundo doente”[4]. Esse mundo doente, contudo, como percebemos pelo próprio desenvolvimento dessa canção entoado pelo falecido Renato Russo, é produto humano. Dessa forma, talvez até sem se da conta, nessa canção temos o reconhecimento de que o dano sofrido pela humanidade não é nada mais do que o efeito colateral de suas próprias ações. A Bíblia chama isso de pecado.  
Podemos perceber algo semelhante numa música de Sílvio Brito, bastante conhecida na voz de Raul Seixas; uma das maiores lendas do bom e velho rock nacional. A canção, em tom de desespero, inicia com as seguintes palavras: “Pare o mundo  Que eu quero descer”[5]. O motivo para essa fuga do planeta, segundo o Maluco Beleza, é o seguinte: “Tá tudo errado. Tá tudo errado”[6]. Pois, “Desorientado segue o mundo”[7] e ele, logicamente, como um cara espero, não pode ficar parado[8].
O que há de tão errado no mundo, para que o legendário Raulzito, apossando-se das ideias do Sílvio Brito, tenha desejado sair desse mundo às pressas? Ou, para usar a linguagem do profeta Jeremias: “Por que, pois, se queixa o homem vivente?”[9] A leitura de Raul é a seguinte: o mundo é um lugar de conflitos raciais que no fundo não passa de briga entre irmãos; de intensa burocracia que dificulta a vida das pessoas simples, de múltiplos e frequentes mecanismos de exploração, de acelerado processo de destruição da natureza, de sonhos não realizados, de sofrimento ininterrupto, de insensibilidade para com aqueles que sofrem, de pessoas que andam sem rumo e tantos outros males.
Esse quadro caótico pintado na canção entoado por Raul Seixas, a semelhança do mundo doente descrito na canção de Renato Russo, é também uma construção humana. Isto é, o mundo descrito por Raul como um mundo todo errado é, podemos assim dizer, obra de nossas mãos. De que, então, se queixa o velho Raul? Jeremias, alguém também familiarizado com a poesia, certamente lhe diria: Queixe-se Raul de seus próprios pecados[10].
Isso equivale a dizer que aquilo que chamamos de homem pós-moderno não é muito diferente do primeiro homem pecador, Adão: alguém que consegue até vê o erro, o pecado, a desordem, que está tudo errado, mas, ao mesmo tempo, é tão cego que não reconhece todas essas coisas como obras de suas mãos e, por isso, procura, de alguma forma, fugir do problema. Esse, segundo a literatura bíblica, é um dos principais efeitos do pecado na humanidade.
Percebemos, portanto, que “tá tudo errado” com o mundo, porque “tá tudo errado” com o homem. Essa deveria ser a percepção humana. Essa transposição epistemológica, certamente, faria a musicalidade humana trilhar novos caminhos, enxergar novos horizontes, limpar as janelas de sua alma, desembaçar as lentes de seus óculos e tecer novos versos; uma canção de arrependimento, mas ao mesmo tempo de libertação:   
    
Oh ! tão cego eu andei, e perdido vaguei,
Longe, longe do meu Salvador.
Mas da glória desceu e seu sangue verteu 
Prá salvar um tão pobre pecador”[11]
________________
[1] Eclesiastes 3:11.
[2] Mateus 12:34.
[3] O livro dos Salmos é pode ser definido como uma coleção de canções;
[4]Índios, composição de Renato Russo. Disponível em <http://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/indios.html>. Acesso em 06 Mar 2014.
[5]Pare o mundo que eu quero descer, composição de Sergio Brito. 
[6] Idem
[7] Idem
[8] Idem
[9] Lamentações 3:39ª.
[10] Lamentações 3:39b.
[11] Hino 396 do Cantor Cristão.

Autor: Hebert Leonardo Borges de Souza, ministro batista, bacharel em teologia pelo Seminário Teológico Batista Nacional de Pernambuco e licenciado em física pela Universidade Federal Rural de Pernambuco

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