segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Os cristãos podem comer alimento com sangue e carne sufocada?

Recentemente nos deparamos em nossa congregação com o seguinte questionamento: O crente pode comer sangue? Procurando dar uma resposta consistente e biblicamente fundamentada a esse tipo de questão, apresentamos, logo abaixo, um pequeno artigo do Filipe Luiz C. Machado:

Muitos crentes sinceros se deparam com dificuldades durante a leitura bíblica. Todavia, como dizia o Dr. Martyn Lloyd Jones, "dúvidas não são incompatíveis com a fé". Deveras vezes, todos nós, nos deparamos com versículos e situações da vida onde não encontramos alguma solução imediata para a dúvida.

Dentre todas as incertezas, está aquela que diz respeito a licitude ou não de se comer alimentos com sangue e carne sufocada. Alguns são os versículos que suscitam tal ponto de interrogação:
- "Toda a pessoa que comer algum sangue, aquela pessoa será extirpada do seu povo" (Lv 7.27);
- "Portanto tenho dito aos filhos de Israel: Nenhum dentre vós comerá sangue, nem o estrangeiro, que peregrine entre vós, comerá sangue" (Lv 17.12);
- "Tão-somente o sangue não comereis; sobre a terra o derramareis como água" (Dt 12.16);
- "Somente esforça-te para que não comas o sangue; pois o sangue é vida; pelo que não comerás a vida com a carne" (Dt 12.23).

Antes de entendermos tal questão, é preciso fazer uma ressalva que, confesso, me deixa intrigado. Permita-me, o leitor, um brevíssimo desabafo.

Comumente os evangélicos cometem o grave pecado de afirmar que a Lei de Deus, isto é, as leis civis do povo de Israel do Antigo Testamento, não são mais válidas para nós - quando, no entanto, Cristo foi cristalino em dizer: "Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir" (Mt 5.17). Ele mesmo disse que era a Lei e os verdadeiros profetas eram Sua boca: "E disse-lhes: São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: Que convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés, e nos profetas e nos Salmos" (Lc 24.44). Porém, embora tais pessoas digam que a Lei não está mais em vigor (somente porque não conseguem vê-la sendo aplicada), frequentemente fazem proibições aos membros e à igreja usando a própria Lei! Ora, isto é um disparate profundo! Ou a Lei é válida, dentro do correto entendimento, ou não é!

Bem, exposto o que me deixa intrigado (mas sei que não somente a mim), destrinchemos a questão.

O Antigo Testamento trabalha com formas visíveis que expressam realidades invisíveis. Por exemplo, o tabernáculo e o templo eram Cristo prefigurado, a saber, apontavam para o Cristo que viria (Mt 26.61); as leis de separação de animais, sementes e tipos de tecidos (Lv 19.19), ensinavam ao povo que eles deveriam ser separados ao Senhor (Lv 26.12); o ano do jubileu, tempo em que se restituía a terra àqueles que a haviam vendido para pagar dívidas (Lv 25.13), era uma demonstração do perdão dado por Cristo e do amor que une os irmãos (Jo 13.35). Assim, seguindo esta mesma sequência, temos as referências ao não comer sangue.

O primeiro fato que devemos notar é o sangue não ser o mal em si mesmo. O sangue não poderia ser a malignidade por si só, pois se assim fosse, os sacerdotes não seriam instados a aspergir sangue no templo (Lv 7.14) de Deus. Se a substância "sangue" fosse pecaminosa, de modo algum o Senhor a requereria de Seu povo.

O segundo fato é o sangue ser uma figura que indica vida: "Somente esforça-te para que não comas o sangue; pois o sangue é vida; pelo que não comerás a vida com a carne" (Dt 12.23 - grifo meu). Notemos que é uma "figura", algo que remete à vida. Bem sabemos que a vida não está somente no sangue. Uma gota de sangue na estrada não indica que há um ser humano, literal e completo, na partícula. Nosso corpo é formado de muitas "juntas e medulas" (Hb 4.12), "De pele e carne" (Jó 10.11a), "de ossos e nervos" (Jó 10.11b)...

O terceiro fato diz respeito à necessidade, assim como nas leis de separação de sementes e demais coisas, do povo ser instruído a valorizar o sacrifício. Lembremos que o povo de Israel convivia constantemente oferecendo holocaustos (ofertas totalmente queimadas), os sacerdotes degolavam animais (Lv 4.15) e criaturas eram frequentemente oferecidas em sacrifícios ao Senhor.

Assim, Deus havia proibido o comer/beber do sangue, não por uma propriedade intrinsecamente má no sangue, mas, sim, por causa da necessidade do povo aprender a não confundir e se perder na leviandade.

Este fato pode ser provado com os elementos da ceia sob a luz do Novo Testamento (leia 1 Coríntios 11). Nenhum cristão, durante a ceia, crê que os elementos sejam literalmente o sangue de Cristo [1], mas nem por isso é displicente com eles - não se põe a ficar "fazendo bolinha" com o pão ou erguendo o cálice para admirar a textura do vinho contra a luz. Por que assim não se procede? Porque o momento é diferente; mesmo que os elementos sejam os mesmos usados nas casas, para os jantares e confraternizações, naquele momento eles representam algo mais importante. Cuida-se para não banalizar o significado, não o elemento.

Desta forma, quando lemos na Escritura que não dever-se-ia comer sangue, o propósito era ensinar os judeus sobre a necessidade de serem santos (que significa ser separado) ao Senhor, não ingerindo o líquido que o Senhor requeria para apontar o perdão dos pecados em Cristo Jesus (Hb 10).

Portanto, hoje, nós cristãos do Novo Testamento, podemos livremente comer qualquer coisa com sangue (uma carne "mal passada" ou galinha ao molho pardo, por exemplo), pois não mais vivemos nas sombras do que os elementos tipificavam, e sim na luz, às asas do Altíssimo. O sangue, sim, para sempre continuará a significar "vida" (tanto que somos instados a somente o utilizar na ceia, a fim de seguirmos o padrão bíblico), mas não mais como motivo de separação. Pelo sangue de Cristo estamos unidos a Ele, de modo que o sangue, o líquido, não deve ser proibido aos cristãos.

O que dizer, por fim, do versículo, "Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da prostituição, das quais coisas bem fazeis se vos guardardes" (At 15.29; 21.15)? Para entendermos, é preciso analisar o porquê da recomendação apostólica.

No início do capítulo 15 é relatado que, "alguns que tinham descido da Judéia ensinavam assim os irmãos: Se não vos circuncidardes conforme o uso de Moisés, não podeis salvar-vos" (At 15.1). Aqueles cristãos advindos do judaísmo não se conformavam com o fato de não haver mais necessidade de circuncisão física, pois agora ela se dava no coração (Rm 2.29). Havendo, então, esta dificuldade para conciliar a vida de judeus convertidos com gentios convertidos, "Congregaram-se, pois, os apóstolos e os anciãos para considerar este assunto" (At 15.16).

Tal assunto não foi facilmente resolvido, de modo que lemos haver ocorrido "grande contenda" (At 15.7) até mesmo entre os apóstolos e anciãos (demais presbíteros reunidos). Pedro se levanta em meio à assembleia e relembra aos irmãos, "que já há muito tempo Deus me elegeu dentre nós, para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do evangelho, e cressem... dando-lhes o Espírito Santo, assim como também a nós; E não fez diferença alguma entre eles e nós, purificando os seus corações pela fé. Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar?" (At 15.7-10). A razão para isso era a referência à Lei, que nos dizeres do escritor de Hebreus: "(Pois a lei nenhuma coisa aperfeiçoou)" (Hb 7.19). Os judaizantes estavam tentando persuadir aos convertidos de que a observância da Lei, por si mesma, seria a causa da salvação - e nisto estavam errados.

Com isso em mente e a discussão em pauta, "tomou Tiago a palavra, dizendo: Simão relatou como primeiramente Deus visitou os gentios, para tomar deles um povo para o seu nome... Por isso julgo que não se deve perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertem a Deus. Mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, da prostituição, do que é sufocado e do sangue" (At 15.13-14, 19-20).

Qual é, pois, a solução para nosso problema? Muito simples. Uma vez que a Igreja de Deus florescia com judeus e gentios vivendo conjuntamente, era necessário estabelecer um padrão, de modo que os judeus não se escandalizassem pela não prática de certos ritos da Lei que haviam cessado em Cristo e, também, de maneira a não levar os gentios (todos os outros povos que não eram judeus) a viverem licenciosamente, como se nada devessem observar.

Este mesmo princípio, a saber, o de não ser escândalo para o próximo, foi aventado pelo apóstolo: "Por isso, se a comida escandalizar a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que meu irmão não se escandalize" (1Co 8.13). Ora, uma vez que a Bíblia não pode se contradizer e notro lugar lemos, "Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, Que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo" (Cl 2.16-17), o entendimento só pode ser um: que o motivo pelo qual os crentes do início do Novo Testamento deveriam se abster de sangue e carne sufocada, não era pela natureza em si dos elementos ou pela forma como ela era obtida, e sim para evitar o escândalo e promover a unidade. Tal qual Paulo estava disposto a nunca mais comer carne (sacrificada a ídolos [veja os versículos anteriores de 1Co 8.13)], caso isto trouxesse consequências na vida dos irmãos mais fracos na fé, bem faremos se de igual modo procedermos.

Que este breve estudo, pela graça e misericórdia de Cristo, o salvador de todos os Filhos de Deus, no qual as cerimônias sangrentas (assim chamadas devido ao sangue) e todas as outras que envolviam prefigurações, foram encerradas e definitivamente substituídas pelo novo Adão, possa, longe de nos levar à devassidão, acima de tudo, nos instar a amar a Deus e ao próximo nos laços fraternais de Jesus.

Louvemos ao Senhor pelo precioso Sangue de Cristo e não temamos o comer e o beber.

"Portanto, quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus" (1Co 10.31). 

Nota:
[1] Esta heresia se chama transubstanciação (católica romana) ou numa hipótese tão ruim quanto, a consubstanciação (luterana). 
Fonte: 2timoteo316.blogspot.com/2013/05/os-cristaos-podem-comer-alimento-com.html+&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-a

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