Alma
humana, um dos maiores empreendimentos da engenharia divina, ao observar a
realidade que aqui se encontra estabelecida, percebe que existe algo de errado
com as coisas que a rodeia e em sua própria constituição. Isto é possível,
acredito, porque no mais profundo da alma humana existe uma espécie de
conhecimento inato, algo como uma radiação cósmica de fundo com origem no
próprio Deus, que traz à superfície da existência humana a certeza de que a
ordem estabelecida no planeta diverge em grande medida do projeto original.
O
sábio Salomão chamou essa capacidade humana de transcender a sua realidade de eternidade[1].
Ela foi depositada pelo próprio Deus no coração humano e o inquieta diante da
realidade. Essa inquietação, fruto da percepção de que as coisas no mundo andam
fora de lugar, está espalhada em inúmeras manifestações humanas. Na literatura,
nos noticiários, nas peças teatrais, na pintura e até mesmo na guerra temos alguns
dos receptáculos daquilo que tem incomodado o ser humano em sua jornada pelo
caos mundano.
Nesse
quadro de inquietações pintado pelo homem diante de sua própria existência, a
música parece encontrar um lugar especial. É, talvez, o veículo de maior
expressão e análise para diagnosticarmos aquilo que incomoda a alma social do
mundo, pois, como bem observou Jesus, “a boca fala do que está cheio o coração”[2].
O próprio Deus, o Pai, também parece reconhecer essa realidade, visto que Ele,
por meio do Espírito Santo, preservou nas Escrituras Sagradas do Antigo
Testamento uma expressiva quantidade de músicas do povo judeu[3]; canções que,
a semelhança daquelas que ouvimos em nossos dias, nos permite observar o coração
humano.
Como
temos demonstrado, o coração humano de nossos dias é profundamente inquieto ante
o caos interno e externo que se manifesta diante de seus olhos. É bem verdade
que o ritmo acelerado com que tem pulsado alguns corações na pós-modernidade parece
“demonstrar” certo ar de tranquilidade.
Isso, todavia, muda drasticamente à medida que o ritmo da vida diminui e todos
percebem que o viver não se limita a correria; o que o sábio descreveu como
correr atrás do vento.
E
é quando esse ritmo diminui e o homem percebe que passou boa parte de sua vida
correndo atrás do vento que ele abre a sua boca e declara: “Nos deram
espelhos e vimos um mundo doente”[4]. Esse mundo doente, contudo, como
percebemos pelo próprio desenvolvimento dessa canção entoado pelo falecido
Renato Russo, é produto humano. Dessa forma, talvez até sem se da conta, nessa
canção temos o reconhecimento de que o dano sofrido pela humanidade não é nada
mais do que o efeito colateral de suas próprias ações. A Bíblia chama isso de
pecado.
Podemos
perceber algo semelhante numa música de Sílvio Brito, bastante conhecida na voz
de Raul Seixas; uma das maiores lendas do bom e velho rock nacional. A canção, em
tom de desespero, inicia com as seguintes palavras: “Pare o mundo Que eu quero descer”[5]. O motivo
para essa fuga do planeta, segundo o Maluco Beleza, é o seguinte: “Tá tudo errado. Tá tudo errado”[6].
Pois, “Desorientado segue o mundo”[7]
e ele, logicamente, como um cara espero, não pode ficar parado[8].
O que há
de tão errado no mundo, para que o legendário Raulzito, apossando-se das ideias
do Sílvio Brito, tenha desejado sair desse mundo às pressas? Ou, para usar a
linguagem do profeta Jeremias: “Por que,
pois, se queixa o homem vivente?”[9] A leitura de Raul é a seguinte: o
mundo é um lugar de conflitos raciais que no fundo não passa de briga entre
irmãos; de intensa burocracia que dificulta a vida das pessoas simples, de múltiplos
e frequentes mecanismos de exploração, de acelerado processo de destruição da
natureza, de sonhos não realizados, de sofrimento ininterrupto, de insensibilidade
para com aqueles que sofrem, de pessoas que andam sem rumo e tantos outros
males.
Esse
quadro caótico pintado na canção entoado por Raul Seixas, a semelhança do mundo
doente descrito na canção de Renato Russo, é também uma construção humana. Isto
é, o mundo descrito por Raul como um mundo todo errado é, podemos assim dizer,
obra de nossas mãos. De que, então, se queixa o velho Raul? Jeremias, alguém também
familiarizado com a poesia, certamente lhe diria: Queixe-se Raul de seus
próprios pecados[10].
Isso equivale
a dizer que aquilo que chamamos de homem pós-moderno não é muito diferente do
primeiro homem pecador, Adão: alguém que consegue até vê o erro, o pecado, a
desordem, que está tudo errado, mas, ao mesmo tempo, é tão cego que não reconhece
todas essas coisas como obras de suas mãos e, por isso, procura, de alguma
forma, fugir do problema. Esse, segundo a literatura bíblica, é um dos
principais efeitos do pecado na humanidade.
Percebemos,
portanto, que “tá tudo errado” com o
mundo, porque “tá tudo errado” com o
homem. Essa deveria ser a percepção humana. Essa transposição epistemológica,
certamente, faria a musicalidade humana trilhar novos caminhos, enxergar novos
horizontes, limpar as janelas de sua alma, desembaçar as lentes de seus óculos
e tecer novos versos; uma canção de arrependimento, mas ao mesmo tempo de
libertação:
“Oh ! tão cego eu andei, e perdido vaguei,
Longe, longe do meu Salvador.
Mas da glória desceu e seu sangue verteu
Prá salvar um tão pobre pecador”[11]
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[1] Eclesiastes 3:11.
[2] Mateus 12:34.
[3] O livro dos Salmos é pode ser definido como uma
coleção de canções;
[4]Índios, composição de Renato Russo. Disponível em <http://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/indios.html>. Acesso em 06 Mar 2014.
[5]Pare o mundo que eu quero descer, composição de
Sergio Brito.
[6] Idem
[7] Idem
[8] Idem
[9] Lamentações 3:39ª.
[10] Lamentações
3:39b.
[11] Hino 396
do Cantor Cristão.